27.5.05
Em Louvor de José Pedro Machado
No início do ano, a 9 de Janeiro, num artigo que aqui coloquei, sobre Apontamentos Linguísticos, citei elogiosamente o nome honrado do Prof. José Pedro Machado, académico emérito, com largo currículo acumulado numa longa vida de dedicação ao Estudo, à Investigação e à divulgação do seu multímodo saber, em especial, nos domínios da Filologia, da Língua Portuguesa e da História Pátria.
Na altura, prometi dedicar-lhe um artigo, em exclusivo, porque me parece amplamente merecê-lo, por muitos e variados motivos de que procurarei enunciar os principais. Em primeiro lugar, pela sua avançada idade, urge tributar-lhe todo o nosso apreço e gratidão.
Nascido em Faro, a 8 de Novembro de 1914, quando começava a 1ª Guerra Mundial, completará em breve a bonita idade de 91 anos, quase um século de existência, com o privilégio de ter assistido a muitas mudanças, algumas radicais, que desde então se operaram no Mundo e na vida da Humanidade.
Se dispussesse de elementos mais completos, ousaria lavrar-lhe aqui mais que uma esforçada e tosca nota biográfica, sem rebuço encomiástica, porque julgo ser nosso dever não nos acanharmos de enaltecer quem naturalmente o merece, sobretudo num tempo que promove tanto falso valor, tanto mérito duvidoso. No caso presente, não estamos perante nada disto. José Pedro Machado está nos antípodas destas considerações.
Apesar dos escassos elementos que a seu respeito fui colhendo e pese a fraca preparação para tal tarefa, tentarei, com eles, ainda assim, modestamente, ajudar a projectar a sua figura, para além dos restritos círculos académicos em que é merecidamente conhecido, estimado e consensualmente distinguido, como pessoa de grande valor intelectual, moral e de irrepreensível comportamento cívico.
O que sei de JPM apurei-o nalguns esparsos artigos que ele mesmo escreveu, em locais diversos, todos de limitada expansão editorial, eles próprios frugais, em consonância com a sua personalidade, que só muito contidamente o deixa falar de si.
Mas, se da sua biografia os elementos me rareiam, já da sua personalidade eles me são suficientes para o poder caracterizar, como Professor, como intelectual, como cidadão e como amigo, última condição em que com ele tenho convivido, ainda que numa relação predominantemente epistolar.
Com efeito, foi o Dr. José Pedro Machado meu Professor de Português, por três anos lectivos, no Ensino Secundário, na velha e reputada Escola Industrial Afonso Domingues, onde ele leccionou largos anos como Professor Efectivo, tendo nela também exercido funções directivas, em acumulação com a sua normal actividade pedagógica.
Como seu aluno, pude comprovar todo o seu vasto saber, aliado a uma competência pedagógica invulgar, de uma generosidade absolutamente excepcional e a justo título admirável.
Bastaria mencionar aqui a sua disponibilidade, num dos anos lectivos, para nos ministrar, extra-curricularmente, aulas de Alemão e de Italiano, para voluntários, aos Sábados de manhã, precioso tempo que JPM roubava às suas múltiplas tarefas e aos seus variados compromissos, para se aquilatar o seu carácter de educador benemérito.
Essas aulas, se não tiveram maior duração, foi apenas porque nós, rapazes estouvados, irrequietos, ainda pouco conscientes do mérito da sua iniciativa, preferimos a bola ou a preguiça do sono mais prolongado de fim-de-semana. De contrário, teríamos certamente beneficiado muito mais dela.
Ainda assim, se muitos anos depois me dispus a aprender alguma coisa de Alemão, no Goethe Institute, no Campo dos Mártires da Pátria, em Lisboa, a ele certamente se deveu o gosto motivador dessa decisão, infelizmente, outra vez pouco aproveitada, embora por diferentes motivos. Numa sessão de homenagem que lhe fizeram, quando se reformou, terá JPM avaliado em cerca de 10 000 os alunos que teve ocasião de ensinar, nas suas aulas, sempre muito concorridas.
Deste avultado número, muitos terão lucrado com o seu convívio pedagógico, alguns sem disso se aperceberem sequer, mas, mesmo que apenas 1% dele tivesse tirado pleno proveito, no seu rumo ulterior até à Universidade e mais tarde na vida prática, já teria saído dali uma centena de espíritos mais lúcidos e apetrechados, aptos a contribuirem, com proficiência, na sua justa medida, para o bem da Comunidade.
Que maior orgulho ou satisfação poderá, da sua acção, um Professor retirar ?
Para muitos, soará algo estranho como pessoa de tão alta craveira intelectual tenha permanecido confinada a um Estabelecimento de Ensino Secundário, apesar de se saber que JPM manteve colaboração constante com Academias e Instituições Culturais, no País e no Estrangeiro, durante toda a sua longa carreira de Professor.
Da sua vida se sabe que veio ainda criança para Lisboa, cidade que adoptou como sua, sem, todavia, esquecer o seu amoroso Algarve, acompanhando a deslocação do pai, militar da Marinha de Guerra Portuguesa.
Aqui viveu, pois, primeiro na zona de Alcântara, perto da Rua Luís de Camões, facto curioso, não dispiciendo, pelo que adiante veremos, quando nos referirmos às suas áreas predilectas de investigação filológica e literária. Morou também na Lapa, em casa de onde se contemplava o estuante e claro Tejo, até se fixar na encosta de uma das mais típicas e encantadoras colinas de Lisboa, junto à Graça, na Rua Leite de Vasconcelos, outro nome famoso, igualmente influente na sua vida profissional e académica.
Frequentou, se não erro, os Liceus Passos Manuel, Pedro Nunes e D. João de Castro, estabelecimentos de ensino de notáveis pergaminhos, na formação de gerações e gerações de portugueses, em que contactou com alguns excelentes Professores, que cedo lhe despertaram qualidades e vocações invulgares, proporcionando-lhe valiosa preparação para a entrada na Universidade.
Estudou depois na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde se formou, em Filologia Românica, em 1938, com boas classificações, tendo-se logo destacado como Filólogo, nas primeiras investigações aí desenvolvidas, em particular no estudo do árabe, em que foi discípulo dilecto do insigne David Lopes, Professor que, na Universidade Portuguesa, se notabilizou como pioneiro e grande impulsionador dos estudos da Língua e Cultura árabes. A sua tese de licenciatura – Comentários a Alguns Arabismos do Dicionário de Nascentes – foi, aliás, logo dedicada a esse tema.
Destinava-se, como tudo indicava, a uma promissora carreira universitária, quando se iniciou como Assistente, na sua Faculdade de Letras, tendo chegado a estar nomeado, por parecer de dois dos seus mais ilustres Professores, David Lopes e Leite de Vasconcelos, para Leitor de Português, na Universidade de Argel, onde certamente aprofundaria – ainda mais – o seu gosto e o seu conhecimento da língua e cultura árabes, quando a deflagração da Segunda Guerra Mundial impossibilitou tão justificada nomeação.
Foi também naquela Faculdade que conheceu a que viria a ser sua mulher, a Professora Elza Pacheco, com ele co-autora da edição comentada do Cancioneiro da Biblioteca Nacional, antigo Colocci-Brancuti e, ela própria, pessoa intelectualmente muito habilitada, autora de trabalhos de méritos reconhecidos.
Desconheço o que terá ocorrido com sua mulher, no ambiente intrigante dos bastidores universitários, mas algo de grave terá sido, para o ter levado, em solidariedade, a demitir-se das suas funções de Assistente Universitário e, em alternativa, ter assumido um lugar mais modesto, mas mais seguro, de Professor Efectivo do Ensino Secundário, naqueles anos espartanos, do início da Segunda Guerra Mundial.
Assim a Universidade Portuguesa se terá privado de uma alta e certa vocação de investigador nas áreas da Filologia, da Literatura e da História, áreas em que, não obstante, ao longo da sua dilatada vida, JPM muito trabalhou, em condições menos propícias, é certo, mas sempre com bons resultados, tanto mais brilhantes, quanto mais precárias ou menos favoráveis as condições de trabalho em que teve de desenvolver as suas muitas obras.
Logo que formado, começou JPM a colaborar em revistas especializadas de Filologia, a convite de Mestres que lhe reconheciam a capacidade intelectual, a cuidada preparação e a integridade de carácter, condições difíceis de encontrar reunidas, em plano elevado, em qualquer comum mortal.
Na década de 40, escreve e edita vários volumes dedicados ao estudo da Língua Portuguesa, mas é em 1952 que surge a sua primeira e grande obra, de autêntico Philologus Emeritus, o Dicionário Etimológico da LP, que tem conhecido várias reedições, confirmando o interesse do vasto público por tema pouco estudado entre nós. Basta assinalar que, desde essa data, ainda nenhum outro português, ousou publicar livro idêntico, ao contrário do que tem sucedido com os tradicionais dicionários generalistas da LP.
Trata-se de obra que exige longa e esmerada preparação cultural, em várias disciplinas complementares do saber filológico, da Língua, à História, à Literatura, à Geografia, à Antropologia, etc., a par de uma fina perspicácia intelectual, capaz de desenredar termos e conceitos, por regra envoltos em polémicas ou disputas, em que se ganham ou destroem reputações.
Lexicógrafo de largo fôlego, JPM elaborou ou coordenou, ao longo de décadas, muitos Dicionários afamados da LP, desde o muito conceituado Morais, até ao Grande Dicionário da Sociedade da Língua Portuguesa, numa prova cabal da sua competência, sempre exercida com inquebrantável dedicação, arrostando com carências, dificuldades e até incompreensões várias.
Outro notável trabalho seu veio a ser a tradução directa do árabe, para a nossa língua, do livro sagrado dos muçulmanos, o Alcorão, cujas profusas e minuciosas notas, pejadas de esclarecimentos, no domínio da História, da Língua, da Geografia e até da Religião, enriqueceram extraordinariamente a obra, inserindo-a no seu contexto cultural e histórico, para melhor se compreenderem o seu profundo significado e a sua verdadeira importância.
Nestas obras mais significativas da sua larga produção intelectual está bem patente toda a sua sólida preparação, todo o seu ânimo empreendedor, que o têm levado a meter ombros a trabalhos espinhosos, exigentes, arrojados e, invariavelmente, de escassa publicidade e diminuto prémio material.
Menciono também a sua antiga ligação à Livraria Portugal, por via da sua íntima amizade com um dos antigos proprietários, Henrique Pinto, já falecido, igualmente espírito empreendedor, com apurado sentido cultural, no exercício da sua nobre função de livreiro, comprovado até na forma como sempre soube atrair a cooperação de JPM, no prestimoso Boletim dos Serviços Bibliográficos da Livraria, a que ele emprestou toda a pujança do seu saber, numa escrita sóbria, mas exacta, elegante, na sua aparente simplicidade, cumprida com escrupulosa regularidade.
Aqui, mensalmente, desde a década de 50 do século passado, JPM publicava artigos de oportuna intervenção cultural, sobre múltiplos temas da Cultura Portuguesa, sobretudo, que depois a Livraria, fundada em 1941, reunia e editava em livro, com o título de «Factos, Pessoas e Livros», ao fim de cada década, nos aniversários da Empresa.
Estão assim publicados 4 volumes, que cobrem aquela colaboração até ao fim de 1990, tendo o 4º volume saído em 1991, na comemoração do cinquentenário da Livraria, aguardando-se o seu 5º e provavelmente último volume, que se encontra preparado para ser editado, com os artigos elaborados desde 1991 até ao presente.
Segundo os responsáveis actuais da Livraria, a falta de patrocinadores interessados tem atrasado a edição deste 5º volume, o que não pode deixar de causar espanto e certa irritação, quando se vê editar em Portugal tanto livro supérfluo de tanta inanidade enfatuada. Decorrem actualmente diligências para se ultrapassar tão insólita situação.
Hábito muito antigo de JPM foi também o de escrever na imprensa nacional e regional, nomeadamente no Diário de Lisboa, no Jornal de Sintra , n ‘O Algarve, no Jornal do Fundão, no Diário de Notícias, onde até manteve, durante anos sucessivos, na década de 90, uma coluna dedicada a «Questões da Língua Portuguesa», verdadeiro oásis no deserto de esquecimento a que este tema tem sido votado nos principais órgãos de Comunicação Social nos últimos decénios.
Em má hora, o Diário de Notícias deixou extinguir aquele potente farol, que derramava a luz do seu saber, numa tribuna sempre muito procurada, com um volume de correspondência dos leitores enorme, como eu próprio pude avaliar, quando para lá lhe escrevi, em Julho de 1996 e JPM me respondeu, com grande cortesia, assinalo, mas apenas cerca de meio ano depois, visto que JPM atendia os seus consulentes por ordem cronológica, indo pacientemente despachando todo aquele imenso correio, prova irrefutável do interesse que a sua coluna despertava nos muitos leitores do DN.
Numa remodelação operada no jornal, começaram por lhe reduzir drasticamente o espaço concedido para a sua intervenção, facto que muito o desgostou, com a agravante de o próprio jornal não seguir, mas até contrariar, as suas recomendações linguísticas, nas páginas contíguas à da sua coluna.
Estas pouco sensatas atitudes levaram JPM a dar por finda a sua tão profícua colaboração na Comunicação Social, perdendo-se, assim, neste âmbito, a oportunidade de escutar uma das nossas raras e esclarecidas vozes, que, denodamente, ao longo dos tempos, têm procurado cultivar e enraizar entre nós o gosto da Língua e da Cultura Portuguesas.
Sem pretender carregar esta nota biográfica, citarei ainda a participação de José Pedro Machado em obras colectivas de forte impacte cultural, como a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, o Dicionário de História de Portugal, de Joel Serrão, a sua colaboração com a Comissão Científica do Acordo Ortográfico Luso-Brasileiro de 1945, que os especialistas brasileiros subscreveram, mas os seus representantes políticos depois não promulgaram.
Citarei igualmente a enorme simpatia e o elevado apreço com que os estudiosos brasileiros da Língua Portuguesa sempre se referiam a José Pedro Machado, como pôde verificar o Professor Joaquim Veríssimo Serrão, Presidente da Academia Portuguesa da História, quando com ele viajou, em Agosto de 1959, até Salvador da Baía, no Brasil, onde se realizou o IV Encontro Internacional de Estudos Luso-Brasileiros.
No volume recentemente editado por aquela Academia, por ocasião da homenagem que, no final de 2004, lhe prestaram, na passagem do seu 90º aniversário, foram reunidos diversos trabalhos, em homenagem a JPM. Num comovido e comovente texto, Veríssimo Serrão relata, com rigor e genuína afeição, vários episódios do seu convívio com JPM e nele igualmente atesta as numerosas provas de carinho que lhe foram sempre votadas pelos seus pares em terras brasileiras.
Em texto do próprio JPM, num livro intitulado «Ensaios Literários e Linguísticos», publicado em 1995, pela Editorial Notícias, ficou, aliás, bem assinalada, em particular, a grande amizade que o unia ao Mestre brasileiro, Antenor Nascentes, Professor ilustre, profundo conhecedor da Língua Portuguesa e autor também de um notável Dicionário Etimológico, no qual JPM largamente se inspirou e de cujo estudo fecundo muito beneficiou para posteriormente elaborar o seu.
Em sessão especial, no final do ano passado, a Academia Portuguesa da História decidiu elevar José Pedro Machado à categoria de Académico de Mérito daquela Instituição, após ter sido sucessivamente seu Sócio Correspondente e Académico de Número, distinguindo desta forma a sua prolífica e valiosa colaboração, nas diversas actividades em que estatutariamente participou.
Já antes, em 1999, esta prestigiosa Academia tinha proposto, ao então Ministro da Cultura, Manuel Maria Carrilho, a atribuição de uma medalha de Mérito Cultural a JPM, que aquele favoravelmente despachou.
Sendo membro de várias Agremiações Culturais, possui JPM mais algumas distinções, mas está por prestar-lhe a mais significativa de todas, a da sua condecoração pública, no 10 de Junho, dia de Camões, de Portugal e das Comunidades, entidades a que JPM tanto trabalho e saber dedicou ao longo da sua extensa vida. Camões e Portugal são temas predilectos, constantemente honrados na produção literária de JPM, como poucos condecorados desta data poderão neste campo com ele ombrear.
Na verdade, o seu nome, ao lado dos das centenas ou milhares já condecorados, nestes últimos 31 anos de Liberdade e Democracia, ressalta como uma evidência gritante da falta de justiça e de equidade nos critérios de que amiúde dão prova os Poderes Públicos, por mais legítimos e impolutos que estes se pretendam.
Cumpre reparar, enquanto é tempo, esta falta inexplicável do Portugal democrático, para com quem sempre o serviu com elevação, competência e dignidade, no Espírito, como na Ética, num comportamento cívico a todos os títulos irrepreensível.
Quero crer que ainda seja possível corrigir esta desatenção.
Honor virtutis praemium / A honra é a recompensa da virtude
Labor omnia vincit / O trabalho tudo conquista ou assim nos convém acreditar.
AV_Lisboa, 26 de Maio de 2005
Na altura, prometi dedicar-lhe um artigo, em exclusivo, porque me parece amplamente merecê-lo, por muitos e variados motivos de que procurarei enunciar os principais. Em primeiro lugar, pela sua avançada idade, urge tributar-lhe todo o nosso apreço e gratidão.
Nascido em Faro, a 8 de Novembro de 1914, quando começava a 1ª Guerra Mundial, completará em breve a bonita idade de 91 anos, quase um século de existência, com o privilégio de ter assistido a muitas mudanças, algumas radicais, que desde então se operaram no Mundo e na vida da Humanidade.
Se dispussesse de elementos mais completos, ousaria lavrar-lhe aqui mais que uma esforçada e tosca nota biográfica, sem rebuço encomiástica, porque julgo ser nosso dever não nos acanharmos de enaltecer quem naturalmente o merece, sobretudo num tempo que promove tanto falso valor, tanto mérito duvidoso. No caso presente, não estamos perante nada disto. José Pedro Machado está nos antípodas destas considerações.
Apesar dos escassos elementos que a seu respeito fui colhendo e pese a fraca preparação para tal tarefa, tentarei, com eles, ainda assim, modestamente, ajudar a projectar a sua figura, para além dos restritos círculos académicos em que é merecidamente conhecido, estimado e consensualmente distinguido, como pessoa de grande valor intelectual, moral e de irrepreensível comportamento cívico.
O que sei de JPM apurei-o nalguns esparsos artigos que ele mesmo escreveu, em locais diversos, todos de limitada expansão editorial, eles próprios frugais, em consonância com a sua personalidade, que só muito contidamente o deixa falar de si.
Mas, se da sua biografia os elementos me rareiam, já da sua personalidade eles me são suficientes para o poder caracterizar, como Professor, como intelectual, como cidadão e como amigo, última condição em que com ele tenho convivido, ainda que numa relação predominantemente epistolar.
Com efeito, foi o Dr. José Pedro Machado meu Professor de Português, por três anos lectivos, no Ensino Secundário, na velha e reputada Escola Industrial Afonso Domingues, onde ele leccionou largos anos como Professor Efectivo, tendo nela também exercido funções directivas, em acumulação com a sua normal actividade pedagógica.
Como seu aluno, pude comprovar todo o seu vasto saber, aliado a uma competência pedagógica invulgar, de uma generosidade absolutamente excepcional e a justo título admirável.
Bastaria mencionar aqui a sua disponibilidade, num dos anos lectivos, para nos ministrar, extra-curricularmente, aulas de Alemão e de Italiano, para voluntários, aos Sábados de manhã, precioso tempo que JPM roubava às suas múltiplas tarefas e aos seus variados compromissos, para se aquilatar o seu carácter de educador benemérito.
Essas aulas, se não tiveram maior duração, foi apenas porque nós, rapazes estouvados, irrequietos, ainda pouco conscientes do mérito da sua iniciativa, preferimos a bola ou a preguiça do sono mais prolongado de fim-de-semana. De contrário, teríamos certamente beneficiado muito mais dela.
Ainda assim, se muitos anos depois me dispus a aprender alguma coisa de Alemão, no Goethe Institute, no Campo dos Mártires da Pátria, em Lisboa, a ele certamente se deveu o gosto motivador dessa decisão, infelizmente, outra vez pouco aproveitada, embora por diferentes motivos. Numa sessão de homenagem que lhe fizeram, quando se reformou, terá JPM avaliado em cerca de 10 000 os alunos que teve ocasião de ensinar, nas suas aulas, sempre muito concorridas.
Deste avultado número, muitos terão lucrado com o seu convívio pedagógico, alguns sem disso se aperceberem sequer, mas, mesmo que apenas 1% dele tivesse tirado pleno proveito, no seu rumo ulterior até à Universidade e mais tarde na vida prática, já teria saído dali uma centena de espíritos mais lúcidos e apetrechados, aptos a contribuirem, com proficiência, na sua justa medida, para o bem da Comunidade.
Que maior orgulho ou satisfação poderá, da sua acção, um Professor retirar ?
Para muitos, soará algo estranho como pessoa de tão alta craveira intelectual tenha permanecido confinada a um Estabelecimento de Ensino Secundário, apesar de se saber que JPM manteve colaboração constante com Academias e Instituições Culturais, no País e no Estrangeiro, durante toda a sua longa carreira de Professor.
Da sua vida se sabe que veio ainda criança para Lisboa, cidade que adoptou como sua, sem, todavia, esquecer o seu amoroso Algarve, acompanhando a deslocação do pai, militar da Marinha de Guerra Portuguesa.
Aqui viveu, pois, primeiro na zona de Alcântara, perto da Rua Luís de Camões, facto curioso, não dispiciendo, pelo que adiante veremos, quando nos referirmos às suas áreas predilectas de investigação filológica e literária. Morou também na Lapa, em casa de onde se contemplava o estuante e claro Tejo, até se fixar na encosta de uma das mais típicas e encantadoras colinas de Lisboa, junto à Graça, na Rua Leite de Vasconcelos, outro nome famoso, igualmente influente na sua vida profissional e académica.
Frequentou, se não erro, os Liceus Passos Manuel, Pedro Nunes e D. João de Castro, estabelecimentos de ensino de notáveis pergaminhos, na formação de gerações e gerações de portugueses, em que contactou com alguns excelentes Professores, que cedo lhe despertaram qualidades e vocações invulgares, proporcionando-lhe valiosa preparação para a entrada na Universidade.
Estudou depois na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde se formou, em Filologia Românica, em 1938, com boas classificações, tendo-se logo destacado como Filólogo, nas primeiras investigações aí desenvolvidas, em particular no estudo do árabe, em que foi discípulo dilecto do insigne David Lopes, Professor que, na Universidade Portuguesa, se notabilizou como pioneiro e grande impulsionador dos estudos da Língua e Cultura árabes. A sua tese de licenciatura – Comentários a Alguns Arabismos do Dicionário de Nascentes – foi, aliás, logo dedicada a esse tema.
Destinava-se, como tudo indicava, a uma promissora carreira universitária, quando se iniciou como Assistente, na sua Faculdade de Letras, tendo chegado a estar nomeado, por parecer de dois dos seus mais ilustres Professores, David Lopes e Leite de Vasconcelos, para Leitor de Português, na Universidade de Argel, onde certamente aprofundaria – ainda mais – o seu gosto e o seu conhecimento da língua e cultura árabes, quando a deflagração da Segunda Guerra Mundial impossibilitou tão justificada nomeação.
Foi também naquela Faculdade que conheceu a que viria a ser sua mulher, a Professora Elza Pacheco, com ele co-autora da edição comentada do Cancioneiro da Biblioteca Nacional, antigo Colocci-Brancuti e, ela própria, pessoa intelectualmente muito habilitada, autora de trabalhos de méritos reconhecidos.
Desconheço o que terá ocorrido com sua mulher, no ambiente intrigante dos bastidores universitários, mas algo de grave terá sido, para o ter levado, em solidariedade, a demitir-se das suas funções de Assistente Universitário e, em alternativa, ter assumido um lugar mais modesto, mas mais seguro, de Professor Efectivo do Ensino Secundário, naqueles anos espartanos, do início da Segunda Guerra Mundial.
Assim a Universidade Portuguesa se terá privado de uma alta e certa vocação de investigador nas áreas da Filologia, da Literatura e da História, áreas em que, não obstante, ao longo da sua dilatada vida, JPM muito trabalhou, em condições menos propícias, é certo, mas sempre com bons resultados, tanto mais brilhantes, quanto mais precárias ou menos favoráveis as condições de trabalho em que teve de desenvolver as suas muitas obras.
Logo que formado, começou JPM a colaborar em revistas especializadas de Filologia, a convite de Mestres que lhe reconheciam a capacidade intelectual, a cuidada preparação e a integridade de carácter, condições difíceis de encontrar reunidas, em plano elevado, em qualquer comum mortal.
Na década de 40, escreve e edita vários volumes dedicados ao estudo da Língua Portuguesa, mas é em 1952 que surge a sua primeira e grande obra, de autêntico Philologus Emeritus, o Dicionário Etimológico da LP, que tem conhecido várias reedições, confirmando o interesse do vasto público por tema pouco estudado entre nós. Basta assinalar que, desde essa data, ainda nenhum outro português, ousou publicar livro idêntico, ao contrário do que tem sucedido com os tradicionais dicionários generalistas da LP.
Trata-se de obra que exige longa e esmerada preparação cultural, em várias disciplinas complementares do saber filológico, da Língua, à História, à Literatura, à Geografia, à Antropologia, etc., a par de uma fina perspicácia intelectual, capaz de desenredar termos e conceitos, por regra envoltos em polémicas ou disputas, em que se ganham ou destroem reputações.
Lexicógrafo de largo fôlego, JPM elaborou ou coordenou, ao longo de décadas, muitos Dicionários afamados da LP, desde o muito conceituado Morais, até ao Grande Dicionário da Sociedade da Língua Portuguesa, numa prova cabal da sua competência, sempre exercida com inquebrantável dedicação, arrostando com carências, dificuldades e até incompreensões várias.
Outro notável trabalho seu veio a ser a tradução directa do árabe, para a nossa língua, do livro sagrado dos muçulmanos, o Alcorão, cujas profusas e minuciosas notas, pejadas de esclarecimentos, no domínio da História, da Língua, da Geografia e até da Religião, enriqueceram extraordinariamente a obra, inserindo-a no seu contexto cultural e histórico, para melhor se compreenderem o seu profundo significado e a sua verdadeira importância.
Nestas obras mais significativas da sua larga produção intelectual está bem patente toda a sua sólida preparação, todo o seu ânimo empreendedor, que o têm levado a meter ombros a trabalhos espinhosos, exigentes, arrojados e, invariavelmente, de escassa publicidade e diminuto prémio material.
Menciono também a sua antiga ligação à Livraria Portugal, por via da sua íntima amizade com um dos antigos proprietários, Henrique Pinto, já falecido, igualmente espírito empreendedor, com apurado sentido cultural, no exercício da sua nobre função de livreiro, comprovado até na forma como sempre soube atrair a cooperação de JPM, no prestimoso Boletim dos Serviços Bibliográficos da Livraria, a que ele emprestou toda a pujança do seu saber, numa escrita sóbria, mas exacta, elegante, na sua aparente simplicidade, cumprida com escrupulosa regularidade.
Aqui, mensalmente, desde a década de 50 do século passado, JPM publicava artigos de oportuna intervenção cultural, sobre múltiplos temas da Cultura Portuguesa, sobretudo, que depois a Livraria, fundada em 1941, reunia e editava em livro, com o título de «Factos, Pessoas e Livros», ao fim de cada década, nos aniversários da Empresa.
Estão assim publicados 4 volumes, que cobrem aquela colaboração até ao fim de 1990, tendo o 4º volume saído em 1991, na comemoração do cinquentenário da Livraria, aguardando-se o seu 5º e provavelmente último volume, que se encontra preparado para ser editado, com os artigos elaborados desde 1991 até ao presente.
Segundo os responsáveis actuais da Livraria, a falta de patrocinadores interessados tem atrasado a edição deste 5º volume, o que não pode deixar de causar espanto e certa irritação, quando se vê editar em Portugal tanto livro supérfluo de tanta inanidade enfatuada. Decorrem actualmente diligências para se ultrapassar tão insólita situação.
Hábito muito antigo de JPM foi também o de escrever na imprensa nacional e regional, nomeadamente no Diário de Lisboa, no Jornal de Sintra , n ‘O Algarve, no Jornal do Fundão, no Diário de Notícias, onde até manteve, durante anos sucessivos, na década de 90, uma coluna dedicada a «Questões da Língua Portuguesa», verdadeiro oásis no deserto de esquecimento a que este tema tem sido votado nos principais órgãos de Comunicação Social nos últimos decénios.
Em má hora, o Diário de Notícias deixou extinguir aquele potente farol, que derramava a luz do seu saber, numa tribuna sempre muito procurada, com um volume de correspondência dos leitores enorme, como eu próprio pude avaliar, quando para lá lhe escrevi, em Julho de 1996 e JPM me respondeu, com grande cortesia, assinalo, mas apenas cerca de meio ano depois, visto que JPM atendia os seus consulentes por ordem cronológica, indo pacientemente despachando todo aquele imenso correio, prova irrefutável do interesse que a sua coluna despertava nos muitos leitores do DN.
Numa remodelação operada no jornal, começaram por lhe reduzir drasticamente o espaço concedido para a sua intervenção, facto que muito o desgostou, com a agravante de o próprio jornal não seguir, mas até contrariar, as suas recomendações linguísticas, nas páginas contíguas à da sua coluna.
Estas pouco sensatas atitudes levaram JPM a dar por finda a sua tão profícua colaboração na Comunicação Social, perdendo-se, assim, neste âmbito, a oportunidade de escutar uma das nossas raras e esclarecidas vozes, que, denodamente, ao longo dos tempos, têm procurado cultivar e enraizar entre nós o gosto da Língua e da Cultura Portuguesas.
Sem pretender carregar esta nota biográfica, citarei ainda a participação de José Pedro Machado em obras colectivas de forte impacte cultural, como a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, o Dicionário de História de Portugal, de Joel Serrão, a sua colaboração com a Comissão Científica do Acordo Ortográfico Luso-Brasileiro de 1945, que os especialistas brasileiros subscreveram, mas os seus representantes políticos depois não promulgaram.
Citarei igualmente a enorme simpatia e o elevado apreço com que os estudiosos brasileiros da Língua Portuguesa sempre se referiam a José Pedro Machado, como pôde verificar o Professor Joaquim Veríssimo Serrão, Presidente da Academia Portuguesa da História, quando com ele viajou, em Agosto de 1959, até Salvador da Baía, no Brasil, onde se realizou o IV Encontro Internacional de Estudos Luso-Brasileiros.
No volume recentemente editado por aquela Academia, por ocasião da homenagem que, no final de 2004, lhe prestaram, na passagem do seu 90º aniversário, foram reunidos diversos trabalhos, em homenagem a JPM. Num comovido e comovente texto, Veríssimo Serrão relata, com rigor e genuína afeição, vários episódios do seu convívio com JPM e nele igualmente atesta as numerosas provas de carinho que lhe foram sempre votadas pelos seus pares em terras brasileiras.
Em texto do próprio JPM, num livro intitulado «Ensaios Literários e Linguísticos», publicado em 1995, pela Editorial Notícias, ficou, aliás, bem assinalada, em particular, a grande amizade que o unia ao Mestre brasileiro, Antenor Nascentes, Professor ilustre, profundo conhecedor da Língua Portuguesa e autor também de um notável Dicionário Etimológico, no qual JPM largamente se inspirou e de cujo estudo fecundo muito beneficiou para posteriormente elaborar o seu.
Em sessão especial, no final do ano passado, a Academia Portuguesa da História decidiu elevar José Pedro Machado à categoria de Académico de Mérito daquela Instituição, após ter sido sucessivamente seu Sócio Correspondente e Académico de Número, distinguindo desta forma a sua prolífica e valiosa colaboração, nas diversas actividades em que estatutariamente participou.
Já antes, em 1999, esta prestigiosa Academia tinha proposto, ao então Ministro da Cultura, Manuel Maria Carrilho, a atribuição de uma medalha de Mérito Cultural a JPM, que aquele favoravelmente despachou.
Sendo membro de várias Agremiações Culturais, possui JPM mais algumas distinções, mas está por prestar-lhe a mais significativa de todas, a da sua condecoração pública, no 10 de Junho, dia de Camões, de Portugal e das Comunidades, entidades a que JPM tanto trabalho e saber dedicou ao longo da sua extensa vida. Camões e Portugal são temas predilectos, constantemente honrados na produção literária de JPM, como poucos condecorados desta data poderão neste campo com ele ombrear.
Na verdade, o seu nome, ao lado dos das centenas ou milhares já condecorados, nestes últimos 31 anos de Liberdade e Democracia, ressalta como uma evidência gritante da falta de justiça e de equidade nos critérios de que amiúde dão prova os Poderes Públicos, por mais legítimos e impolutos que estes se pretendam.
Cumpre reparar, enquanto é tempo, esta falta inexplicável do Portugal democrático, para com quem sempre o serviu com elevação, competência e dignidade, no Espírito, como na Ética, num comportamento cívico a todos os títulos irrepreensível.
Quero crer que ainda seja possível corrigir esta desatenção.
Honor virtutis praemium / A honra é a recompensa da virtude
Labor omnia vincit / O trabalho tudo conquista ou assim nos convém acreditar.
AV_Lisboa, 26 de Maio de 2005
15.5.05
Breve Explicação
Impedimentos de vária ordem têm feito com que não me tenha sido possível actualizar este blogue, apesar de não me faltar a vontade de nele continuar a colocar as minhas opiniões, memórias e, passe a pretensão, até algumas intervenções em matérias de interesse cívico.
Dos principais, cito um motivo grave de saúde de um familiar e imprevisto e demorado contratempo de natureza informática, tudo contribuindo para esta indesejada prolongada paragem.
Em breve, no entanto, regressarei para debater variados temas de interesse social e cultural.
Aos que aqui passam ou passarem, deixo esta pequena explicação e a promessa de um retorno pleno de energia e de oportunidade.
Até muito breve.
AV_Lisboa, 15 de Maio de 2005
Dos principais, cito um motivo grave de saúde de um familiar e imprevisto e demorado contratempo de natureza informática, tudo contribuindo para esta indesejada prolongada paragem.
Em breve, no entanto, regressarei para debater variados temas de interesse social e cultural.
Aos que aqui passam ou passarem, deixo esta pequena explicação e a promessa de um retorno pleno de energia e de oportunidade.
Até muito breve.
AV_Lisboa, 15 de Maio de 2005